Brasil no mundo pós-Covid: liderança confiável na luta pela segurança alimentar

16 Junho 2020
/ Artigos

Por Pedro Henrique de Souza Netto (Mestre em Relações Internacionais e Analista de Negócios Internacionais na Apex-Brasil)

Em meio à quarentena global imposta pela Covid-19, diversos analistas ao redor do globo elaboraram análises sobre o mundo após o novo coronavírus. O Financial Times (Virus..., 2020), em editorial, sugeriu a necessidade de uma maior participação do Estado na economia, enquanto a The Economist (Is China..., 2020) discutiu aspectos geopolíticos e comerciais relacionados à China. Agências de classificação de risco e consultorias, como Moody’s, Fitch e Euromonitor, lançaram análises semanais de perspectivas macro e microeconômicas para o ano. O grande número de análises contribuiu principalmente para mostrar o alto grau de incerteza pelo qual o mundo passa no momento.

Nesse contexto de mudança, um tema que passa de forma secundária por análises é a segurança alimentar. De todo modo, diversos fatores apontam para os desafios do cenário intra e pós-Covid-19 para a nutrição global. Restrições à movimentação de pessoas, e na produção de bens, durante a pandemia, e a crise econômica que provavelmente a seguirá, é certo que impactarão o comércio mundial de alimentos. Esses fatores, por sua vez, tendem a causar flutuação em preços, reduzir a diversidade de dietas e prejudicar a geração de empregos envolvidos no processamento de alimentos. Tal cenário pode se provar especialmente nocivo para os 2 bilhões de pessoas que, em 2018, já enfrentavam algum grau de insegurança alimentar – inclusive em regiões relativamente ricas como América do Norte e Europa (89 milhões) e Oriente Médio e Norte da África (151 milhões). A Covid-19 certamente criará dificuldades para a aquisição de uma alimentação saudável nos próximos meses.

Em um cenário de incerteza geopolítica e dificuldade alimentar, o Brasil ganha a oportunidade de cada vez mais se posicionar com destaque no cenário internacional. Três fatores principais explicam esse posicionamento: a inelasticidade na demanda global por alimentos, a preocupação de governos com a segurança alimentar de sua própria população, e a robustez da produção agroindustrial brasileira.

É consensual que alimentos possuem demanda relativamente inelástica. Isso ficou evidente nos últimos meses: na China, primeiro país afetado pelo novo coronavírus, a demanda ficou relativamente estável mesmo durante os meses de quarentena, com avanços percentuais na casa dos três dígitos tanto no consumo em varejo de lojas físicas quanto no e-commerce. Ao redor do globo, o avanço nas restrições à movimentação de pessoas foi acompanhado por crescimento nas vendas de alimentos básicos (como massas, cereais e alimentos prontos). Como resultado da alta demanda por alimentos, a Fitch estima que o setor cresça 6,5% em 2020 – quando o PIB global deve crescer cerca de 1%.

Mesmo com a demanda inelástica por alimentos, a Covid-19 traz mudanças significativas também para este setor. O crescimento no consumo residencial possivelmente gerará impactos de médio prazo, incluindo o aumento no e-commerce e a queda no consumo em restaurantes e hotéis. Do mesmo modo, preferências podem ser alteradas – a Euromonitor, por exemplo, considera provável que consumidores busquem adquirir alimentos mais baratos, reduzir a busca por bens premium ou tentar alterações dietárias como o semivegetarianismo. Na análise setorial, haverá vencedores e perdedores: proteína animal, por exemplo, tende a se manter como alimento mais comercializado no mundo nos próximos cinco anos, enquanto massas provavelmente crescerão por serem de fácil preparação. Já café pode ser impactado negativamente pela Covid, em razão da queda no consumo em cafeterias. Em meio à crise do coronavírus, a demanda por alimentos se manterá, mas seus efeitos não serão homogêneos.

A manutenção na demanda por comida gera uma preocupação nos governos nacionais: como manter sua população alimentada? O aumento de controles sanitários em portos e estradas, por si só, já criou atrasos no transporte de alimentos, e a contaminação de trabalhadores pela Covid-19 já fechou grandes frigoríficos nos Estados Unidos. A produção ainda tende a ser impactada por outro tipo de problema – o da mão de obra. A agropecuária de países da Europa Ocidental, Oceania e Estados Unidos é fortemente dependente de trabalhadores estrangeiros, e é esperado que as restrições nas viagens internacionais criem escassez de mão de obra na próxima safra. As medidas restritivas tomadas pelos governos ante o caos provocado pela Covid-19 estão impactando negativamente a produção global de alimentos.

Na tentativa de conter os efeitos dessa queda, os países têm tomado dois tipos de decisão: restringir ou flexibilizar as regulamentações de comércio exterior. As restrições se concentram na proibição de exportações ou na determinação de cotas de vendas internacionais. A Romênia, país-membro da União Europeia, suspendeu as exportações de cereais, farinha, açúcar e óleos. O Vietnã, quinto maior produtor mundial de arroz, aplicou cotas de exportação ao produto. Já a União Econômica Euroasiática (bloco que inclui a Rússia) restringiu as exportações de cereais e oleaginosas, farinhas e temperos, enquanto a Turquia aplicou controles à exportação de limão. No sentido oposto, países como Rússia, Indonésia, Suíça e Marrocos reduziram as barreiras à importação de produtos como cereais, farinhas, lácteos, hortaliças e ovos. Tanto as restrições às exportações quanto a flexibilização de importações afetam principalmente alimentos básicos.

A procura aquecida por alimentos e a restrição à exportação por alguns fornecedores (seja por queda de produção, seja por regulações) certamente irá gerar um déficit de entrega de alimentos que pode ser suprido por players que possuam uma agroindústria robusta. O Brasil, por seu setor produtivo e diante da atual conjuntura, tem a capacidade de suprir o mundo com alimentos saudáveis.

A produção brasileira de alimentos é reconhecida por sua resiliência, que se torna comparativamente maior que a dos Estados Unidos e da União Europeia nesse momento da pandemia. Em razão da característica rural do setor e de sua alta tecnificação (e resultante baixo uso de mão de obra), surtos de Covid-19 são menos prováveis no campo brasileiro. Em um diferencial frente a seus concorrentes, o agronegócio local não é dependente de mão de obra estrangeira, reduzindo o impacto de restrições a viagens sobre a produção. Por esses motivos, a Fitch e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos projetam que a produção de proteína animal, oleaginosas e cereais cresça no Brasil durante 2020.

Para fora da porteira, o crescimento da produção brasileira de alimentos é beneficiado por ações estruturais que apoiam empresas do setor e simplificam o escoamento. A “MP do Agro” (Lei 13.986/2020), de 07 de abril, por exemplo, foi bem recebida por associações setoriais por suprir a antiga demanda de atualizar instrumentos de financiamento rural pelo setor privado. O governo federal ainda atuou para proteger a logística de exportação, flexibilizando contratações em portos e articulando o adiamento de greve no Porto de Santos. Internacionalmente, a depreciação em 31,4% do valor do real frente ao dólar (até 20 de abril) tem ampliado a competitividade de bens alimentares brasileiros no exterior . Medidas governamentais e mesmo a conjuntura econômica global têm cooperado com a capacidade de exportação de alimentos do Brasil.

Cabe mencionar, contudo, que mesmo a produção brasileira enfrenta riscos em meio à epidemia da Covid-19. No curto prazo, a proteção à saúde de funcionários em grandes plantas processadoras de alimentos é necessária para evitar surtos, e os subsequentes fechamentos de fábricas como ocorreram nos Estados Unidos. Simultaneamente, a desvalorização do real afeta a compra de fertilizantes (a grande maioria importada) e impactará os custos de produção nas próximas safras. Ademais, a quebra em grandes cadeias logísticas globais pode reduzir a disponibilidade de contêineres frigoríficos no Brasil. Já no longo prazo, é possível um fortalecimento da tendência de mercado do localismo, propelida por preocupações sanitárias e por um senso de comunidade reforçado pela doença. Mesmo com uma conjuntura favorável, o agronegócio brasileiro precisará investir tempo e recursos na defesa da saúde de seus funcionários, na compra de insumos, na análise de caminhos logísticos e em promoção para exportar sua produção.

Em The State of Food Security and Nutrition in the World 2019, a FAO (2019) e outras agências da ONU manifestaram sua preocupação com o aumento da fome no mundo que ocorre desde 2015. Com a pandemia da Covid-19 e a consequente crise econômica que a segue, é improvável que esse cenário se reverta em 2020. Nesse contexto, países que têm a capacidade de produzir grande quantidade de alimento barato e saudável ganham a oportunidade de reforçar sua posição como provedores no comércio mundial de alimentos. Com a alta demanda global, quebras de produção e proibições de exportação em vários países, e a robustez de seu setor rural, o Brasil tem a possibilidade de reforçar sua posição de fornecedor global confiável de alimentos no mundo pós-Covid.

Resumo

O surto de Covid-19 trará implicações para a saúde e a economia globais. Na interseção entre ambos, a doença impacta a produção de alimentos, colocando em risco a segurança alimentar de bilhões de pessoas. O Brasil está em posição de reforçar sua posição de fornecedor global e confiável de alimentos.

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