200 anos do comércio Brasil-Portugal

9 Setembro 2022
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por George Vidor
Economista e jornalista

Comerciantes por natureza

Muito do sangue que corre em nossas veias é de origem portuguesa. Temos também sobrenomes italianos, alemães, franceses, poloneses, japoneses, árabes, russos, chineses, tupi-guarani (deveríamos ter também sobrenomes africanos, mas ao serem trazidos para cá, os escravizados foram obrigados a deixar para trás seus nomes de origem), porém são raros os brasileiros que não têm antepassados portugueses. Em nosso DNA carregamos essa herança portuguesa, ainda que isso hoje passe despercebido pela maioria.

O comércio, sem dúvida, faz parte desse DNA.

Portugal descobriu o Brasil em pleno mercantilismo. As nações buscavam acumular ouro, como padrão de riqueza.
E o comércio era então a principal via dessa acumulação. As grandes navegações portuguesas avançaram pela costa ocidental da África na busca do ouro. Vencido o Cabo das Tormentas e seu gigante Adamastor, e não se explorando ouro na quantidade desejada, os portugueses encontraram nas especiarias das Índias (no cravo, na canela) um comércio tão lucrativo que, mesmo quando apenas um terço da frota retornava, o lucro obtido era suficiente para deixar muito bem os sobreviventes e os parentes daqueles que haviam perdido a vida nos longos meses de navegação.

A costa do Brasil recém-descoberto foi vasculhada em busca do ouro. Portugueses que para aqui vieram nunca desistiram dessa procura, que somente foi bem-sucedida no finzinho do século XVII, nas futuras Minas Gerais.Enquanto o metal permanecia escondido, explorava-se o que havia junto da costa, especialmente o pau-brasil. Milhões de árvores foram cortadas, para aproveitamento da madeira e da confecção da tinta vermelha, cor das roupas dos nobres europeus. Nenhuma preocupação com a natureza ou sustentabilidade, obviamente, como era usual na época. Ainda no Brasil seiscentista era preciso entrar 20 quilômetros mata adentro para se encontrar o pau de tinta, pois as árvores junto à costa foram quase todas cortadas. E, para tal, era preciso a colaboração dos indígenas. Muito escambo em troca da madeira. Exímios construtores de canoas (com um só tronco, eram capazes de fazer embarcações que enfrentavam a virada das marés transportando mais de 20 pessoas), aprendia-se ou aprimorava-se com os indígenas técnicas de aproveitamento da madeira. O Brasil logo se tornou um bom lugar para os reparos navais.

Passada a febre das especiarias, surgiu outra, a do açúcar, produto, antes de exclusivo uso medicinal, que revolucionou a culinária europeia no início da Idade Moderna. A capitania de Itamaracá e o recôncavo baiano logo foram vistos como regiões produtoras promissoras, capazes de produzir um açúcar de qualidade semelhante ao da Ilha da Madeira.

As lavouras e os engenhos precisavam de braços para o trabalho. Os indígenas escravizados não se prestavam para tal. Ao serem aprisionados, preferiam a morte. E contavam com a proteção dos jesuítas e da própria lei.

Portugal, com seus 3 milhões de pessoas, não tinha gente suficiente para colonizar a nova terra. A escassez de mão de obra masculina já era grande, com as perdas nas grandes navegações, e faltavam braços para cultivar até mesmo o campo em Portugal, que, por isso, vivia crises no fornecimento de alimentos.

A exploração de mão de obra escravizada africana já se tonara comum em parte da Europa. Uma rede de comércio de pessoas se estabeleceu na costa ocidental da África e por cerca de 350 anos estima-se que mais de 12 milhões de pessoas foram aprisionadas e levadas à força principalmente para as Américas, e – mais de 4 milhões para o Brasil. O tráfico negreiro (comércio e transportes) se tornara, infelizmente, a atividade econômica mais lucrativa entre as colônias americanas e africanas, chegando a se transformar em atividade autônoma da própria coroa portuguesa, que monopolizava o comércio de bens essenciais, como o tabaco e a aguardente – usados como moeda de troca, no comércio.

Os principais traders do açúcar na Europa eram os holandeses. Mas os principais fornecedores eram os portugueses (posteriormente também os franceses, espanhóis e ingleses). Financistas judeus de origem portuguesa, que foram se abrigar em Amsterdã a partir de 1530, devido a perseguições que causaram uma nova diáspora na Península Ibérica (muitas estimativas apontam que cerca de 30% da população portuguesa e espanhola eram de judeus, nessa época), contribuíram para a formação de um mercado financeiro lastreado no comércio do açúcar.

A descoberta do ouro pelos bandeirantes paulistas nos afluentes do Rio das Velhas sacudiu a colônia e o próprio reino a partir de 1690. Por um período, barreiras tiveram de ser criadas para que não houvesse um esvaziamento populacional de outras regiões da colônia, e mesmo do reino, impedindo que as pessoas corressem para as minas gerais em busca do almejado ouro. A busca se profundou pelo interior de Goiás, até Mato Grosso. Onde havia apenas picadas e trilhas indígenas foram abertas estradas para passagem de tropas de mulas. Ao longo dos caminhos, surgiam pontos de apoio, com produção de alimentos. Surgia assim uma pecuária leiteira e uma manufatura do couro. A necessidade de mão de obra intensificou o tráfico negreiro. E para evitar a ação de bandoleiros, corsários, piratas, a coroa teve de investir mais na segurança da colônia. O principal centro administrativo foi transferido da Bahia para o Rio de Janeiro.

“O primeiro ato do príncipe regente D. João, ao chegar ao Brasil, foi a abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Se antes os navios que saíssem ou chegassem ao Brasil tinham que passar por Lisboa ou pelo Porto, em Portugal, tal obstáculo desapareceu. O comércio da colônia com o exterior (leia-se Inglaterra e Holanda) se multiplicaria por vinte em uma rapidez extraordinária”

A euforia do ouro e das pedras preciosas durou aproximadamente cinquenta anos. Aluviões foram se esgotando e a produção passou a declinar. A região de Vila Rica de Ouro Preto, que chegara a abrigar quase 80 mil pessoas, não tinha mais que 6 mil, quando os inconfidentes mineiros tramaram pela criação de uma república independente na província, em 1789.

A colônia do açúcar, do algodão, do couro, do pau-brasil, do ouro e das pedras preciosas seria sacudida outra vez em 1808 com a fuga da família real portuguesa, acossada por tropas napoleônicas. Uma corte europeia quase inteira iria se transferir de Lisboa para o Rio de Janeiro, envolvendo de 10 mil a 15 mil pessoas (somente de tripulantes havia cerca de 7 mil).

O primeiro ato do príncipe regente D. João, ao chegar ao Brasil, foi a abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Se antes os navios que saíssem ou chegassem ao Brasil tinham que passar por Lisboa ou pelo Porto, em Portugal, tal obstáculo desapareceu. O comércio da colônia com o exterior (leia-se Inglaterra e Holanda) se multiplicaria por vinte em uma rapidez extraordinária.
Defuntos nobres passaram a ser enterrados em caixões importados. Trigo, produzido na Europa, finalmente chegaria à colônia. Chás da Ásia, idem.

O declínio da produção de ouro nas Minas Gerais permitiu que terras até então proibidas no Vale do Paraíba fossem liberadas para uso e ocupação. Produtores de alimentos nas minas foram brindados com sesmarias lá e aos poucos substituíram as matas por fazendas de café.
A necessidade de braços para lavoura cafeeira acentuou o tráfico negreiro. Nivelada à categoria de reino por D.João, a antiga colônia prosperava com base no café, no açúcar, no algodão, na mineração, no tráfico negreiro.

“Nos primeiros anos do Brasil independente, o café já havia assumido o papel de principal fonte de renda do país. E livre para importar de quem quer fosse, o Brasil se afasta de Portugal e se aproxima mais da Inglaterra, da França e da Prússia, que detinham as maiores fontes de financiamento”

Uma outra história começa em 1822

Tanto em termos populacionais como econômicos a antiga colônia, passados 320 anos, já se equiparava à sede
original do reino. Em 1800, o Brasil Colônia tinha o mesmo PIB do florescente Estados Unidos da América.

Em 1821, já aclamado como rei, D. João VI é pressionado a retornar com a corte para Lisboa. A era da monarquia absolutista estava nos seus estertores.
Interesses brasileiros e portugueses entram em confronto. O Brasil se separa oficialmente de Portugal em 7 de setembro de 1822.

Seguem-se três anos de conflito até que a independência brasileira seja reconhecida por Portugal, não antes sem o pagamento de indenizações (pelos ativos da coroa deixados no Brasil) e assunção de dívidas pelo novo Império. Três anos também foram necessários para que o recém-criado Império do Brasil conquistasse a adesão de outras regiões (Pernambuco, Ceará e o Grão-Pará) que foram reticentes à independência, inicialmente.
Nos primeiros anos do Brasil independente, o café já havia assumido o papel de principal fonte de renda do país. E livre para importar de quem quer fosse, o Brasil se afasta de Portugal e se aproxima mais da Inglaterra, da França e da Prússia, que detinham as maiores fontes de financiamento.

O comércio entre os dois países despenca. Pelas estatísticas disponíveis, o comércio Brasil-Portugal passa a representar somente 6% do total comercializado, situação que não se modifica ao longo do primeiro e do segundo reinados. Em 1835, Portugal se queixa junto ao Brasil pela dificuldade de exportar vinho do Porto para cá.

O café assume a hegemonia nas exportações brasileiras no século XIX. A Guerra de Secessão nos Estados Unidos dá um novo ânimo para o açúcar e o algodão no Brasil. Em 1830 o tráfico negreiro é formalmente abolido, mas somente será extinto, de fato, em 1850 (permanecendo ainda alguma atividade de contrabando), quando já deixara de ser lucrativo. O comércio interno de escravos se mantém até 1888, especialmente com a transferência de escravizados do Nordeste para o Sudeste.

As duas primeiras décadas do Império do Brasil foram de quase estagnação econômica. Havia pouca integração econômica – e até mesmo administrativa – entre as diferentes regiões do país. Se por um lado o arcabouço institucional herdado de Portugal pecava pelo excesso de burocracias e controles, por outro certamente ajudou à jovem nação a não se fragmentar, como ocorreu com a América espanhola.

Ao fim da década de 1840, com o jovem imperador D.Pedro II empossado, superados os conflitos do período da regência, a economia brasileira ganhava impulso, capitaneado pelo café. Extinto o tráfico negreiro internacional, fluxos de capitais passaram a se dirigir para outras atividades. Construção naval, ferrovias, cabotagem e as primeiras indústrias. A partir de 1870, polos têxteis se incrementam na serra fluminense (Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo), no Rio de Janeiro e em São Paulo. Somente o Barão de Mauá, o grande empresário Irineu Evangelista de Souza, reunia em torno de si 50 empresas. Iluminação pública a gás e outras melhorias começam a transformar as cidades brasileiras, até então muito carentes de infraestrutura.

A Guerra do Paraguai, de 1865 a 1870, drena grande parte dos recursos públicos que começavam a se destinar a obras de infraestrutura. No entanto, a corte imperial vai se sofisticando. O comércio elegante do Rio de Janeiro se afastaria dos padrões de Lisboa para se espelhar em Paris.
As elites brasileiras já não mais procuravam se educar em Coimbra. Estavam voltadas para Londres ou Paris.
O fluxo comercial Brasil-Portugal refletirá esse distanciamento.

A República não muda esse quadro

Quando a monarquia perde a sua sustentação política e a República se instala no país em 1889, o Brasil ainda é uma nação essencialmente rural, com população iletrada e infraestrutura precária. Economicamente, muito dependente do café.

No intercâmbio com Portugal, a novidade é uma onda migratória, com origem no Norte português (Minho, Trás-os-Montes), que se estende até a década de 1950. Portugal vive uma em crise política e econômica. Assim, como no Brasil, a monarquia cai e Portugal se torna uma república, que se volta mais para suas colônias na África do que para as Américas.

A presença dos imigrantes portugueses em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre, Belém incrementa e difunde hábitos de consumo mais típicos de Portugal. No Natal, o vinho, a castanha, o azeite e o bacalhau estarão cada vez mais presentes à mesa dos brasileiros.

Essa será a base da pauta de importações brasileiras de Portugal. O Brasil, por sua vez, exportará alguns alimentos, mas não o café e o açúcar, que serão procedentes das colônias portuguesas na África.

Substituição de importações

Do impulso de industrialização na economia brasileira a partir de 1945, em um processo conhecido como substituição de importações, Portugal pouco participará. O Brasil importava bens de consumo (refrigeradores, máquinas de costura, aparelhos de TV, carros) dos Estados Unidos. E ao substituir essas importações por produção nacional, importará máquinas e insumos dos Estados Unidos e de alguns países da Europa. Até o fim dos anos 1960, o café representará mais de 50% das exportações brasileiras. Açúcar, algodão, tabaco e erva-mate (borracha, por um curto período de 12 anos, no início do século XX) complementarão essa pauta. Do lado das importações, estarão presentes máquinas, insumos industriais, bens manufaturados e trigo.
Crises crônicas do balanço de pagamentos e de inflação se acelerando a partir de 1950 vão restringir as importações brasileiras.

No chamado período do milagre econômico brasileiro (1969 a 1974), ainda que um ativo programa de construção naval estivesse em curso no país, o Brasil encomenda navios mercantes de Portugal, construídos pelos estaleiros Lisnave e Setenave. Após a Revolução dos Cravos, há uma considerável fuga de capitais portugueses para o Brasil, o que somente se inverteria a partir dos anos 1990.

“Até o fim dos anos 1960, o café representará mais de 50% das exportações brasileiras. Açúcar, algodão, tabaco e erva-mate (borracha, por um curto período de 12 anos, no início do século XX) complementarão essa pauta. Do lado das importações, estarão presentes máquinas, insumos industriais, bens manufaturados e trigo”

A entrada de Portugal na União Europeia e os programas de desestatização no Brasil iriam criar oportunidades relevantes de investimentos de empresas portuguesas aqui, a exemplo das telecomunicações, energia elétrica, petróleo e concessões rodoviárias. Já o investimento brasileiro em Portugal iria se caracterizar mais pela iniciativa de indivíduos do que por empresas.

A companhia aérea internacional com mais voos para cidades brasileiras é a TAP Air Portugal. Voos diários fazem essa ligação com Lisboa e Porto. No passado, os voos entre Brasil e Portugal eram ocupados principalmente por portugueses imigrantes, sempre saudosos da terrinha, como costumavam se referir carinhosamente ao país natal. Antes da apresentação das novelas brasileiras na TV portuguesa, e do aumento do fluxo turístico (em ambas as direções), a população estranhava o português falado no Brasil, não só pelo uso de palavras diferentes, como pela forma de construção das frases (no Brasil usa-se muito o gerúndio; em Portugal, o infinitivo e o imperativo) e o próprio acento. Se uma pessoa está bem, no Brasil diz-se que está legal. Em Portugal, legal é um termo usado nos tribunais...

Houve efetivamente uma redescoberta do Brasil pelos portugueses e de Portugal pelos brasileiros. As oportunidades que surgiram na economia portuguesa após a integração com a União Europeia atraíram brasileiros ansiosos por uma vida melhor e com menos problemas encontrados em uma nação do chamado Terceiro Mundo.

“Ainda que haja diferenças no modo de ser, e até de se comunicar, entre os dois povos, os brasileiros se sentem mais à vontade em Portugal do que em qualquer outro país europeu.
Quando isso se conjuga a qualidade de vida e trabalho, Portugal se apresenta como um sonho para muitos brasileiros”

A revolução digital tem sido uma dessas oportunidades. Como o trabalho nesse campo já não exige a presença física, a demanda por serviços da tecnologia da informação pode ser atendida à distância para vários mercados a partir de Portugal. Ainda que haja diferenças no modo de ser, e até de se comunicar, entre os dois povos, os brasileiros se sentem mais à vontade em Portugal do que em qualquer outro país europeu. Quando isso se conjuga a qualidade de vida e trabalho, Portugal se apresenta como um sonho para muitos brasileiros. O fluxo migratório se ampliou à medida que brasileiros conquistaram a cidadania portuguesa em decorrência de laços familiares relativamente recentes (pais e avós portugueses natos).

Tal realidade deverá se refletir nos próximos anos no incremento do comércio Brasil-Portugal, em ambas as direções. Pela formação de sociedades, parcerias e negócios que contemplem os dois mercados simultaneamente. Será possível ampliar a pauta de comércio, ainda restrita a produtos básicos e/ou tradicionais no intercâmbio comercial. E estamos nos referindo também ao segmento de serviços, que tem grande importância tanto na economia portuguesa como na brasileira. No caso dos serviços financeiros, por exemplo, o intercâmbio, que era tímido, tende a crescer a partir de profissionais brasileiros de TI que se especializaram na área bancária, e hoje são residentes em Portugal.

E mesmo no caso das mercadorias, é possível que o comércio venha a ter um peso equivalente ao que o Brasil possui com outras nações com renda média equivalente ao de Portugal.

O setor de petróleo de gás deve ser uma das alavancas  desse intercâmbio. Graças a investimentos na camada do pré-sal, na costa brasileira, com níveis de produtividade dos poços entre os mais altos do mundo, empresas portuguesas associadas à Petrobras e a outras companhias estão ganhando papel de destaque nessa atividade. E a tendência é que os resultados da exploração e da produção em combustíveis fósseis venham a financiar projetos de energia mais limpa e renovável, como o hidrogênio verde, por exemplo. Portanto, como perspectiva, há muito o que desenvolver no intercâmbio e parcerias em pesquisas científicas e tecnológicas entre Brasil e Portugal e vice-versa. As estatísticas comerciais e econômicas dos próximos anos refletirão essas mudanças positivas na relação entre os dois países. Temos, sem dúvida, o que comemorar nesses 200 anos de comércio Brasil-Portugal.
A Funcex, agora presente em Portugal, espera contribuir para o alcance desses novos objetivos!!!

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