Além do Bojador

12 Setembro 2022
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por Nicola Moreira Miccione
Secretário-chefe da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro

O Seminário de Verão da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra é um dos mais importantes eventos do calendário dos países de língua portuguesa. Se considerarmos que o português é falado por 280 milhões de pessoas, da Europa à Ásia, da África às Américas, posso afirmar que este é, inquestionavelmente, um dos principais eventos do calendário da comunidade acadêmica global.

Isso porque a nossa anfitriã, a Universidade de Coimbra, é a décima oitava universidade mais antiga do mundo e a décima quarta da Europa. Fundada em 1290, por seus corredores passaram pessoas que ajudaram a moldar o mundo em que vivemos. Nomes como Luís de Camões e José Bonifácio de Andrada e Silva, o “patriarca” da independência do Brasil.

Usando os novos conceitos econômicos aplicados à indústria do conhecimento, a Universidade de Coimbra pode ser considerada uma das maiores fábricas do mundo, que há 732 anos se ocupa de produzir cérebros para Portugal, o Brasil e o mundo. A universidade reúne estudantes de quase 100 países, que representam 25% da população de Coimbra. Do ponto de vista do conhecimento, é indiscutivelmente uma cidade global.

Neste momento em que discutimos novos caminhos para a economia e o comércio internacional; em que a própria ideia de globalização enfrenta sua antítese em movimentos que pregam a desglobalização e o isolacionismo total ou parcial; em que guerras colocam em xeque as cadeias globais integradas de valor; neste momento em que a pandemia de Covid 19, a guerra da Ucrânia e os movimentos migratórios provocados por conflitos ou pela fome (resultado de uma ineficaz, desigual e desumana distribuição de riquezas, alimentos, medicamentos e água) demonstram a fragilidade do mundo globalizado; neste momento é preciso que cada país e região olhe para dentro de si para conseguir enxergar o mundo em que se insere.

A globalização e o comércio internacional não são fenômenos recentes. Os impérios grego e romano iniciaram o processo com a expansão de seus domínios, levando sua cultura e seu modo de vida para outros países e continentes.
A busca por especiarias fez com que os países da Europa avançassem por mares nunca dantes navegados e passassem ainda além da Taprobana, fortalecendo essa integração.

A matemática é hindu-arábica, a medicina avançou com a contribuição dos mouros e orientais, marcas nacionais não são locais, como o macarrão e a pizza na Itália, que são chineses e árabes. O vinho, orgulho nacional de diversos países, como Portugal, foi criado há mais de oito mil anos, com registros inicialmente na região da Síria, Líbano e Jordânia. A cerveja, identidade alemã, teve origem há seis mil anos, na Suméria, no sul da Mesopotâmia. Como seria nossa vida sem o papel ou nossas festas sem os fogos de artifício, criados na China? A mesma China da pólvora, cujo uso nas guerras mudaram a face do mundo. A globalização é ancestral e impossível de se encerrar. Sem a globalização não haveria o que chamamos de sociedade ou desenvolvimento.

Portugal e o mar têm participação incontestável na construção do mundo globalizado. Embora Portugal jamais tenha se autodenominado “império”, o império colonial português foi o primeiro império global da história, considerado o mais antigo dos impérios coloniais europeus modernos. Sua história se estende por quase seis séculos, a partir da conquista de Ceuta, em 1415, até a devolução à China da soberania sobre Macau, em 1999.
O império português espalhou-se por territórios que hoje fazem parte de 53 países. Em 1571, uma série de postos avançados ligava Lisboa a Nagasaki, no Japão, ao longo das costas da África, Médio Oriente, Índia e Ásia.
Esta rede comercial trouxe grande riqueza para o reino de Portugal.

Como podemos ver, o mar sempre foi ator principal na história do desenvolvimento das sociedades e econômico do mundo e de Portugal, especialmente. E o mar, hoje, é cada vez mais protagonista. Embora pensemos viver em um mundo digital, conectado via satélite, 98% das comunicações globais são feitas pelo mar, através dos cabos submarinos. O mar, e não as nuvens, é a grande avenida do mundo das tecnologias de informação e comunicação.

Cerca de 85% do comércio internacional de mercado rias são realizados através do mar, em uma moderna realidade de um processo que já foi dominado por Portugal. Portugal tem todos os requisitos para que seus portos sejam os portões ocidentais da Europa. Oitenta por cento de todo o oxigênio que respiramos são produzidos pelos oceanos, os verdadeiros pulmões do planeta.
Cada vez que jogamos lixo, cada vez que derramamos óleo, que poluímos os mares, pode ser comparado a fumar um cigarro e dar mais um passo rumo a uma doença fatal nos pulmões do planeta.

Manter o funcionamento da sociedade moderna, com suas máquinas, depende e dependerá, ainda por muitos anos, do petróleo, cujas maiores reservas se encontram no mar, nas chamadas camadas pré-sal. Além disso, há milhares de elementos no fundo dos mares, de ferro a ouro, de diamante a terras raras, de nióbio a grafeno. O maior potencial de geração de energia do mundo está nos oceanos, com as fazendas eólicas, fotovoltaicas, a geração maremotriz e a nova fronteira energética, a produção de hidrogênio azul e verde.

“Embora pensemos viver em um mundo digital, conectado via satélite, 98% das comunicações globais são feitas pelo mar, através dos cabos submarinos.
O mar, e não as nuvens, é a grande avenida do mundo das tecnologias de informação e comunicação”

Apesar de toda a sua importância e de serem singrados há milênios, os mares ainda são desconhecidos. Podemos afirmar que o potencial biológico de animais a plantas sequer começou a ser mapeado em profundidade. Quantas curas para quantas doenças estão nos aguardando nesses mares, onde muito de seu sal é sangue de Portugal?

Por ser o oceano essencial à própria existência da vida humana no planeta, o direito dos mares assume fundamental importância. É preciso normas que protejam o oceano e que abarquem questões como riquezas de uso direto já disponíveis (pesca/navegação) e de uso a partir de intervenção no meio ambiente, tais como extração de petróleo e gás.
Historicamente, a parte mais importante do direito era o marítimo, que tratava da movimentação ou navegação.
Assim, foram estabelecidas a liberdade e mesmo o cerceamento da navegação em proteção aos direitos e interesses nacionais. Foram definidas regras para assegurar a soberania dos países representados nas bandeiras das embarcações que transitam pelo mundo e as normas que devem ser cumpridas, em virtude das convenções internacionais.

Mas o futuro não é mais como era antigamente. Hoje o direito marítimo internacional precisa olhar de forma mais atenta e firme para a proteção e exploração ambientalmente responsável dos oceanos. Esse foi um dos temas da Conferência dos Oceanos, realizada em Portugal entre 27 de junho e 1º de julho último. Pela sua história no mar e com o mar, a escolha de Portugal para a conferência foi um reconhecimento justo por parte da ONU.

É preciso que falemos claramente da exploração das riquezas marinha e subaquática, pois elas são e serão exploradas. Por isso, temos de regular essas ações de forma que a exploração dessas riquezas não comprometa o futuro da humanidade. As necessidades e interesses do hoje não têm o direito de matar as possibilidades do amanhã.
É dentro dessa visão que o Rio de Janeiro vem estruturando seu programa de desenvolvimento da economia do mar.

 Com uma visão holística em que a preservação, principal objetivo, não é inimiga, mas parceira, do uso consciente dos recursos para o bem da população. Olhar para o mar e ver desenvolvimento é natural para o Rio de Janeiro, que nasceu para a idade moderna quando os portugueses chegaram pelo mar, na Baía da Guanabara, em 1502. A mesma baía que, hoje, está em processo de recuperação ambiental.

Com a concessão dos serviços de saneamento, pelo governo do estado, serão investidos, em cinco anos, 480 milhões de euros em ações de despoluição da baía. Pela primeira vez os projetos têm o objetivo não de fazer uma limpeza cosmética, o que já se mostrou ineficaz. Os investimentos serão feitos para impedir que a poluição chegue até à baía, coletando e tratando todo o esgoto e recolhendo todo o lixo produzidos no seu entorno. A natureza é generosa e se regenera rapidamente quando para de ser agredida. A Baía da Guanabara não voltará a ser como em 1502, porque hoje é a principal fonte econômica do estado, com seus portos, indústrias naval e náutica, aeroporto, transporte, fábricas, pesca, pesquisa científica e lazer.

Voltando ao mar, o Rio de Janeiro possui 643 km de litoral e 300 mil quilômetros quadrados de mar territorial confrontante. São 25 municípios litorâneos com 400 mil empregos na economia do mar. Para desenvolver o setor foi criada a Comissão Estadual de Desenvolvimento da Economia do Mar (Cedemar). Nas áreas tradicionais da economia do mar, o Rio de Janeiro é um dos maiores produtores de óleo e gás do mundo, concentrando as reservas do pré-sal no Brasil. O estado responde por 80,6% da produção de petróleo e 64,0% da produção brasileira de gás natural. Projetos em implantação e em estudo no estado do Rio de Janeiro, especialmente na área de gás natural, envolvem investimentos de 19.2 milhões de euros para a extração e a criação da infraestrutura para atender à demanda do mercado.

Na indústria naval o Rio de Janeiro responde por 50% do setor no país, com 20 estaleiros. O estado concentra nove portos e diversos terminais internacionais, tendo um porto ou grande terminal especializado a cada 47 quilômetros (maior densidade portuária do Atlântico Sul). O sistema portuário do Rio de Janeiro concentra a exportação de óleo e gás do Brasil. Estão no estado alguns dos mais importantes portos do Brasil na área de minérios (Itaguaí e Açu) e contêineres (Rio de Janeiro e Itaguaí).
Nas novas fronteiras o estado possui nove projetos offshore de geração eólica em licenciamento que somam 27,49 gigawatts, com potencial de investimentos de R$ 450 bilhões. São 20,6% dos projetos em nível nacional.

Os projetos multiplicam seus impactos por áreas que vão da tecnologia à indústria naval, da metalurgia à siderurgia, de transportes à educação, com a formação de mão de obra. O Rio de Janeiro concentra ainda os mais importantes centros acadêmicos e de pesquisa do Brasil nas áreas naval, oceanográfica, de petróleo e gás, logística, de biologia e engenharias ligadas à economia do mar, assim como uma das mais importantes indústrias pesqueiras do país.

Rio de Janeiro e Portugal possuem muito em comum e precisam ser aliados quando se fala em comércio internacional e, especialmente, economia do mar. Para além das relações econômicas diretas, possuem similaridades históricas, de formação social e econômica, ligadas à exploração do mar. Rio de Janeiro e Portugal passaram por fases intensas de desestruturação da economia do mar, inclusive em áreas onde já foram lideranças globais, como a pesca em Portugal. Suas experiências e expectativas podem se complementar através de trabalhos conjuntos, de apoio mútuo e da defesa comum dos interesses locais e nacionais do desenvolvimento, notadamente, hoje, em hidrogênio azul e verde.

“Rio de Janeiro e Portugal passaram por fases intensas de desestruturação da economia do mar, inclusive em áreas onde já foram lideranças globais, como a pesca em Portugal. Suas experiências e expectativas podem se complementar através de trabalhos conjuntos, de apoio mútuo e da defesa comum dos interesses locais e nacionais do desenvolvimento, notadamente, hoje, em hidrogênio azul e verde”

Tanto Portugal quanto Rio de Janeiro querem e precisam dar o salto para o futuro na transição energética consciente, sustentável e economicamente responsável para com seu compromisso atual e futuro. Nossa participação no XXVII Seminário de Verão da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nossas similaridades, desejos e ambições, nos tornam, Rio de Janeiro e Portugal, mais uma vez, irmãos na escrita da história.

É uma grande e fabulosa providência divina que esse momento tenha ocorrido em Coimbra que, assim como o Rio de Janeiro, foi capital do seu país. Coimbra no século XII e Rio de Janeiro no século XVIII.

No encerramento, uma mensagem que reflete a alma inquieta e desbravadora de homens e mulheres do Rio de Janeiro e de Portugal:
Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu.*


*Do poema Mar Português, de Fernando Pessoa. O Cabo Bojador, na costa africana, era considerado o limite do mar navegável porque, dizia-se, os ventos e as correntes impossibilitariam o regresso de quem o dobrasse. Quando Gil Eanes finalmente navegou para além do Bojador e voltou, foi ultrapassada uma barreira psicológica capital. Neste poema, o Bojador simboliza todos os desafios que houve que vencer no esforço das descobertas, independentemente do custo humano.

Este artigo é uma adaptação da palestra proferida no XXVII Seminário de Verão da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal, em 6 de julho de 2022.

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