Novas oportunidades, velhos obstáculos

8 Setembro 2022
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por José Roberto Rodrigues Afonso
Professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), pesquisador do Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) da Universidade de Lisboa – Portugal

Desde a pandemia internacional da Covid-19 até a Guerra da Ucrânia, o mundo passa por transformações estruturais profundas e rápidas. Em muitos aspectos, o Brasil poderia se beneficiar, em princípio, das novas condições e circunstâncias, tanto por ter um dos maiores mercados consumidores do mundo, como por se destacar na produção agropecuária e na geração de energia limpa, que abre perspectivas ímpares no caso do hidrogênio verde.

Desde já, o país poderia atrair muitos dos fabricantes e prestadores de mercadorias e serviços que hoje consome, mas por estarem localizados em outros países e continentes, tais importações passam a enfrentar dificuldades crescentes com a logística devido a guerras e pandemias. Também poderia aproveitar o momento para aumentar seu potencial de exportações para nações mais próximas.

O Brasil, que tem sido criticado por ser, historicamente, uma das economias mais fechadas ao comércio internacional, depara-se hoje com um cenário muito favorável, ao menos em termos de condições estruturais (à parte o curto prazo, em que inflação e juros podem derrubar o crescimento). Infelizmente, não mudaram as condições e expectativas quanto ao cenário interno, sobretudo no que respeita aos aspectos institucionais. Da forma de incidência de impostos e contribuições até o acesso ao crédito, aos juros e às subvenções, nada mudou de forma estrutural, e talvez em alguns aspectos até tenha piorado, sobretudo quando comparado aos concorrentes internacionais, que se beneficiam de reformas e políticas tributárias, fiscais e creditícias cada vez mais voltadas para fomentar exportações e substituir importações. Perigosamente, no caso do sistema tributário, algumas propostas bem intencionadas de reforma podem produzir efeito justamente inverso, como agravar o acúmulo de créditos tributários não devolvidos ou aproveitados por contribuintes, notadamente aqueles que são fortemente exportadores e investidores.

Muitos dos problemas e dos prováveis equacionamentos já são antigos conhecidos, mas têm sido evitados, talvez por comodidade, política e até técnica. Neste artigo, que mais assume a forma de um ensaio, retomamos algumas antigas propostas, porque são inevitáveis, ainda que de outro modo, porém com os mesmos efeitos.

Antes de tudo, é bom registrar que reformas institucionais poderiam ter impacto imediato no aumento de produção e vendas, porque o sistema produtivo ostenta capacidade ociosa bem elevada, conforme demonstrado no Gráfico 1.

GRÁFICO 1.
EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL E DO NÍVEL DE SUA UTILIZAÇÃO - 2012/2022

Fontes: IBGE e CNI. Elaboração própria.



O foco nas exportações sustenta o fato de que seria a solução mais rápida diante de tanta ociosidade no setor produtivo, permitindo responder rapidamente e sem pressões inflacionárias. Contudo, deve-se deixar claro que isso não significa negligenciar outros entraves, como a logística sofrível e cara. Se não houver a adoção de medidas efetivas de estímulo às exportações, sobretudo de produtos industrializados, a estagnação tenderá a prevalecer no horizonte econômico por muitos anos.

Destarte, o sistema tributário e bancário brasileiro opera, praticamente, sobre os mesmos alicerces há mais de meio século. Regras e práticas foram desenhadas e adotadas para um crescimento com foco exagerado no mercado doméstico, o que contribuiu para a desorganização de diversas cadeias produtivas e a perda de dinamismo do setor industrial. Não custa recordar que, até 1996, os estados ainda cobravam ICMS sobre exportações, e, até hoje, alguns ainda reclamam sua volta diante da falta de compensações federais. A taxa real de juros básicos voltou a ser a mais alta do mundo, mas a taxa de mercado é muitas vezes superior a esse nível, tornando impossível ao exportador aí se financiar para fazer o giro da produção que pretende vender ao exterior.

Para aprimorar as políticas, urge melhor diagnosticar esses problemas, adotar, ao menos, medidas paliativas e encaminhar reformas definitivas.

A distorção tributária mais grave não está no tamanho da carga tributária em si, mas em sua estrutura, excessivamente baseada na taxação de bens e serviços. Ela se dá de forma muito desigual, de uma para outra operação (no caso do ICMS estadual, incidia pesadamente sobre insumos estratégicos) e, o mais grave, com os fiscos das diferentes esferas de governo recusando-se a devolver aos exportadores os créditos dos tributos acumulados ao longo da cadeia de produção, o que atrapalha e posterga seu aproveitamento.

Já sobre um novo sistema tributário, vale aqui destacar as lições do saudoso grande jurista, dr. Alcides Jorge Costa, esclarecendo que, embora muitos citassem e defendessem um imposto sobre valor adicionado (IVA), poucos compreendiam sua lógica e forma de incidência, inegavelmente uma peculiar e complexa maneira de tributar o consumo de bens e serviços.

GRÁFICO 2.
IVAS NO MUNDO (ALÍQUOTAS)

Fonte: PWC. Disponível em: https://pwc.to/2L97XQU. Elaboração própria. Nota: Em caso de países com mais de uma alíquota, considerou-se a maior.

GRÁFICO 3.
IVAS NO MUNDO (EM % DA ARRECADAÇÃO TOTAL) - 2016


O IVA, originário das práticas de tributação sobre vendas na França antes e após a Segunda Guerra Mundial, fora concebido como imposto nacional, típico de estados unitários. Hoje, mais de 160 países o adotam, e alguns se referem a ele como imposto sobre bens e serviços (daí vem a sigla IBS) ou imposto geral de vendas.1 O debate da reforma tributária no Brasil deveria tentar formar consenso em torno de conceitos básicos dos tributos pretendidos antes de enveredar nos detalhes.

Aliás, deveria evitar engessar o texto constitucional, diante da revolução digital que está a mudar profundamente economia e serviços – não se sabe quais serão os melhores tributos do futuro. Mas tem-se a certeza de que muitos dos atuais ou não servirão mais ou vão permanecer. Como se pretende priorizar ou até monopolizar a reforma em torno de um ou dois impostos sobre valor adicionado, com o nome que lhes seja dado, antes de tudo seria melhor que se conhecesse minimamente o que significa e como se aplica. Nesse sentido, vale aqui mencionar três pontos: modalidade e recolhimento;
combate à cumulatividade; e formas de lançamento do IVA.

Dentre as diversas combinações relativas à modalidade e ao recolhimento, o imposto incidente sobre a totalidade das vendas, sem que haja compensação do imposto gerado anteriormente, apresenta-se como o menos desejável, na medida em que se trata de um tributo cumulativo, incidente em cascata. Tal imposto distorce preços relativos e estimula a integração vertical das empresas, inibindo o crescimento econômico e causando danos à competitividade dos produtos nacionais. Não é o caso do IVA, visto que ele permite a compensação do imposto gerado na transação anterior. Assim, configura-se como um imposto não cumulativo e, como tal, de maior neutralidade em relação a produção, distribuição e preços.

“A fim de combater a cumulatividade, é imprescindível que os impostos sobre vendas não onerem as transações intermediárias do processo de produção e distribuição de mercadorias. Para tanto, sua base de incidência última deve ser constituída apenas dos gastos finais dos agentes econômicos”

A fim de combater a cumulatividade, é imprescindível que os impostos sobre vendas não onerem as transações intermediárias do processo de produção e distribuição de mercadorias. Para tanto, sua base de incidência última deve ser constituída apenas dos gastos finais dos agentes econômicos. Entre os mecanismos existentes, dois são destaque para tributação única dos gastos finais: ou se tributa somente o último estágio da distribuição de mercadorias ou o valor adicionado em cada uma das etapas da produção e circulação. Isto é, a imposição e coleta podem se processar em um estágio único, normalmente na etapa varejista, constituindo o chamado imposto sobre vendas a varejo (IVV), ou em múltiplos estágios, correspondendo ao IVA. Em tese, os dois produzem os mesmos resultados, dado que a única diferença entre ambos reside na forma como a receita é coletada – sob o IVV, a receita é arrecadada de uma só vez na etapa final do consumo e sob o IVA, o recolhimento é diluído ao longo da cadeia de produção e circulação de mercadorias em múltiplas etapas.

Dentre as diversas formas de lançamento de um IVA, que incluem os métodos de adição, subtração e do crédito fiscal, destaca-se o último, segundo o qual aplica-se a alíquota sobre o valor de cada venda, gerando o débito do imposto a pagar que, por sua vez, é compensado pelo crédito do imposto gerado nas compras anteriores.

Em outras palavras, ao contribuinte é concedido um crédito dos impostos gerados nas etapas anteriores a ser abatido do débito do imposto que surge quando uma nova transação é realizada. Tem-se, dessa forma, uma enorme vantagem em relação aos demais métodos, ao concatenar as diversas transações processadas ao longo das cadeias de produção e distribuição e tornar as dívidas tributárias dos contribuintes (o imposto a recolher) interdependentes entre si. Assim, por meio da cadeia débito-crédito composta pelas diferentes etapas da atividade econômica, forma-se um importante instrumento de fiscalização e de formalização das transações.

Outra vantagem desse método é a possibilidade de efetuar o diferimento do imposto ao meio das cadeias produtivas sem afetar o volume de receitas que se deseja arrecadar. Isto é comum para as estruturas de mercado onde há grande número de pequenos produtores, normalmente agrícolas de baixa formalização, que vendem sua produção para entrepostos, armazéns, cooperativas ou indústrias. Ao zerar a alíquota dessas operações, renuncia-se à arrecadação da etapa em que as vendas são pouco formalizadas, de modo a recuperar a receita não arrecadada na etapa posterior junto aos entrepostos, armazéns etc., normalmente pessoas jurídicas formalizadas. Como não há imposto a ser creditado para essas pessoas jurídicas em suas aquisições de pequenos produtores, o débito integral de suas vendas passa a ser o saldo a ser recolhido, recompondo-se, assim, a receita perdida na etapa anterior.

Outro grande diferencial referente ao uso do método do crédito consiste na oportunidade de permitir desonerar os investimentos e as exportações sem recorrer a procedimentos burocrática e excessivamente complexos. Ou seja, permite que o imposto seja repercutido de forma não cumulativa para onerar apenas o componente do consumo na composição da renda nacional.
Uma medida que deve ser vista como primordial é a cumulatividade tributária, tida como o dano mais grave e limitador das condições de o produtor brasileiro concorrer contra o estrangeiro, seja nos mercados externos, seja até mesmo no mercado doméstico, mas nem sempre é medida com precisão.

Assim, enquanto não se adota um único ou amplo tributo sobre valor adicionado e eliminam-se incidências cumulativas, faz-se necessário restaurar a alíquota plenamente autorizada para o Reintegra, que nem deveria ser classificada como renúncia, uma vez que se trata de uma medida compensatória para devolver ao exportador parte dos créditos tributários acumulados ao longo da cadeia de produção. Os saldos já acumulados deveriam ser reconhecidos e securitizados, para restituição mais longa, mas estimulando a criação de um mercado formal para sua negociação, como mais um instrumento financeiro. Para o longo prazo, é preciso criar um sistema tributário baseado em um só imposto nacional sobre valor adicionado, o que mitigaria a formação de créditos, que, se restarem, devem ser devolvidos em prazo fixo e curto.

A securitização também poderia ser instrumento útil para equacionar outro estoque de valores tributários, mas que constam do balanço dos governos: o passivo oculto. É o caso dos saldos credores de tributos, inclusive os indiretos, não devolvidos pelos fiscos aos seus contribuintes, concentrados em exportadores e investidores em capital fixo. Se esse passivo também fosse securitizado, seria possível promover um encontro de contas, para começar no âmbito de cada contribuinte que, não raro, tanto é devedor quando credor do fisco. O mercado de capitais brasileiro é suficientemente organizado e regulado para permitir um avanço expressivo na securitização de ativos e de passivos dos diferentes governos.

Enfim, o Brasil precisa acertar contas com seu passado tributário o mais breve possível porque, em pouco tempo, terá que se deparar com uma nova economia que exigirá não uma reforma tributária, mas um novo sistema. Na economia, o Brasil poderia adotar uma política comercial mais agressiva e proativa. Em particular, duas variáveis, tributos e crédito, precisam ter um tratamento mais adequado e propício à aceleração das exportações.

“Enquanto não se adota um único ou amplo tributo sobre valor adicionado e eliminam-se incidências cumulativas, faz-se necessário restaurar a alíquota plenamente autorizada para o Reintegra, que nem deveria ser classificada como renúncia, uma vez que se trata de uma medida compensatória para devolver ao exportador parte dos créditos tributários acumulados ao longo da cadeia de produção”

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