Repensando os Acordos Comerciais: maior flexibilidade e resultados mais rápidos

8 Setembro 2022
/

por Renato G. Flôres Jr.
Diretor do FGV NPII e professor da FGV EPGE


INTRODUÇÃO

Aos 28 de junho de 2019, com grande júbilo e sorrisos de vários lados, foi celebrado o término definitivo das negociações do Acordo de Livre Comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Se o júbilo é sempre, nesses casos, justificado, para observadores calejados ele tinha um certo amargor incontornável.

O dito acordo se arrastou por burocracias, aeroportos, origem ou destino de custosas e múltiplas, múltiplas mesmo, viagens, salas as mais variadas, por boa parte da Europa e do Cone Sul, em infinitas e ilusórias reuniões, que encerravam assuntos para só para reabri-los meses depois, consumindo papéis, estudos, cálculos sobre cálculos, discussões, financiamentos de “projetos de suporte”, estudos sobre estudos e salários, bolsas e per diems de um exército de milhares de burocratas, consultores, acadêmicos, experts, espiertos e especialistas, por mais de 20 anos – prazo em que os grupos mudaram substancialmente os padrões de comércio, as tecnologias idem, a geoestratégia idem e, breve, o mundo inteiro.

Ademais, o texto finalmente celebrado configura um acordo comercial abrangente que, além de – idealmente – objetivar, dentro de um (novo) período não muito curto de tempo, zerar as tarifas e barreiras de importação de cada lado, para os produtos provenientes do outro, inclui diversas disciplinas adicionais, nas áreas de serviços, propriedade intelectual, preocupações ambientais, entre outras. Isso significa que, como a União Europeia (UE) insistiu em fazer um acordo amplo, ao contrário de outros recentemente já assinados e em vigor, ele necessita ser aprovado pelos parlamentos/congressos de cada país membro, bem como pelo Parlamento Europeu. A aprovação por país-membro também há que se dar no Mercosul.

Esse “pequeno passo” implica quase uma reabertura dos debates. No Parlamento Europeu, e em seletos nacionais, seja como nova tentativa do nefando lobby agrícola, seja por bem ou mal-intencionadas preocupações ambientais, a aprovação do Acordo volta a ser condicionada a medidas e posturas em outras áreas, exigidas aos membros do outro bloco.

Ademais, na atual conjuntura europeia, e na presente situação, embora menos tensa e complexa, no Mercosul a perspectiva de tais andamentos visando à efetiva implementação do Acordo é restrita. O trágico conflito armado em solo europeu está a dividir ainda mais a União, o que piorará com a chegada das temperaturas mais baixas, deixando pouco espaço para esse tipo de debate e decisão.1 Em suma e em bom português: nada até agora ocorreu, e continuamos no mesmo pé em que estávamos há 23 anos, confirmando a previsão de vários analistas que, otimistas no início, adotaram forte ceticismo quanto a essa empresa.

É legítimo perguntar qual o sentido de perpetuar tamanho esforço? Questionar onde fica o dinheiro dos consumidores e o respeito e prestação de contas a eles devido, depois dessa ópera que já vai muito além do buffo e mantém a pálida chama de um benefício cada vez mais imponderável? É em esforços como esse que se deve concentrar o foco da política comercial, sobretudo em tempos difíceis e incertos como os atuais?

Se esse Acordo demorou demasiado e supera em tempo de negociação qualquer outro existente, é importante lembrar que a ambição de tratados com essa abrangência, ainda que esteja um pouco arrefecida, segue latente, e outros exemplos são significativos. A Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), que na amplitude de suas harmonizações e convergências mais do que roçou visões de sociedade, risco e segurança que separam, além do Atlântico, o continente europeu dos Estados Unidos, acabou abortada após longas e custosas negociações. A desculpa-padrão é a subida de uma nova administração na Casa Branca, contrária à iniciativa. Se o argumento tem o seu peso e razão, grandes dificuldades e impasses ainda estavam à frente do projeto, não sendo claro – salvo para os entusiastas de praxe – que algo substancial pudesse ser obtido em tempo hábil.

Neste breve artigo, argumentamos pelo sepultamento ou, no mínimo, um inteligente distanciamento dessa ânsia de acordos abrangentes e extensos, doravante chamados mega-acordos2 que, a partir de um objetivo comparativamente pedestre de liberalização do comércio de bens e serviços entre países ou blocos, abarquem uma multiplicidade de assuntos e questões, mais ou menos afetas à instância comercial, requerendo resoluções, regras, padrões e procedimentos adicionais, que seriam parte integrante do texto final do Acordo. Quase na direção oposta, propomos uma volta a acordos mais restritos que, antes de tudo, não percam o foco no fim primordial que a tudo deu origem: facilitar e aumentar o fluxo de comércio entre os envolvidos.

Na seção seguinte varremos de forma sucinta os argumentos contra os mega-acordos, dramática e sucintamente exemplificados nesta Introdução. Na terceira seção procuramos também reconsiderar estudos da mesma ordem, enquanto na quarta seção elaboramos um pouco mais o tipo de acordo que privilegiamos e sua relação com um órgão multilateral de ordenamento do comércio mundial. A última seção apresenta as conclusões.

Para um país como o nosso, há urgência em modernizar a política comercial, mediante o uso inteligente de outros instrumentos, de acordos específicos e bem planejados. Não há tempo nem ambiente para a consecução de acordos-mãe que, por um fiat do deus dos tratados abrangentes, nos colocaria na linha de frente das economias avançadas. Isso não existe; é o trato cada dia mais intenso e extenso do comércio a poderosa ferramenta de transformação da economia. Trato que é para já.

MEGA-ACORDOS: ILUSÕES E CUSTOS OCULTOS

Desconhecemos a existência de estudos que procuram aferir o custo envolvido na discussão, debate e negociações várias, elaboração e reelaborações de um mega-acordo. Há, todavia, que atentar para três fontes importantes, descritas a seguir. A longa duração das negociações e trâmites até à assinatura.

Durante o enorme lapso temporal decorrido – e sem entrar em detalhes sobre eventuais “culpas“ de uma das partes, ou o recurso a estratégias de protelamento, algo bastante comum – interesses e conjunturas evoluem, os fluxos de comércio se modificam, tecnologias se alteram e as vantagens comparativas, muitas vezes dinâmicas, desaparecem ou surgem em outros setores ou países. A evolução dos padrões de comércio é também fruto dos câmbios na geopolítica – algo a que voltaremos mais à frente – o que requer muita cautela ao se realizar avaliações dos ganhos prováveis, que se desdobram em horizontes de décadas. Tudo isso pode facilmente tornar questionável até se o acordo em pauta continua a ter a importância que já mereceu e teve.

Para se ter uma ideia simples da força das alterações, tomemos um setor-chave para o Mercosul quando o Acordo começou a ser discutido – os produtos agrícolas. Em 2000, com as negociações em curso, a Alemanha, a França e os Países Baixos figuravam entre os cinco maiores exportadores do mundo nesse setor – os Estados Unidos, de longe o primeiro –, testemunhando a importância desse mercado na UE e por que era tão difícil e atrativo penetrá-lo. Em 2010 eles continuavam entre os cinco top, mas o Brasil entra no quarto lugar, deslocando o Canadá. Em 2020, a França é superada pela China, que passa a ocupar o quinto lugar, seguida por Alemanha, Países Baixos e um Brasil em segundo lugar, muito próximo aos Estados Unidos! Quanto à carne bovina, hoje a UE é apenas o quinto maior comprador de nossa carne, seguida, nessa ordem, por Egito, Emirados Árabes e Filipinas que vêm aumentando as suas compras. O maior comprador, China, importa mais do que os nove seguintes.

Encontramo-nos diante de situações totalmente diferentes, em que o interesse da UE como mercado para a agropecuária, não somente brasileira como mercosulina, decresceu fortemente.

O fator humano e o custo logístico

É sabido que a maioria dos membros da OMC não tem a capacidade de manter uma delegação permanente em Genebra, o que seria a forma ideal de acompanhar as diversas reuniões e decisões que regularmente se dão no âmbito do organismo: é demasiado caro. Contentam-se em conseguir tentar viabilizar o envio do pessoal especializado – na maioria dos casos reduzido – em datas de reuniões-chave para o país, restritas essas ao mínimo.

A negociação de um mega-acordo mobiliza um número grande de funcionários, além de diplomatas, para sustentar e subsidiar as posições, contactar os múltiplos setores e agentes envolvidos. Estes também mobilizarão recursos e capital humano próprio, ao qual se somará o grupo de consultores mais variados, que serão sucessiva e progressivamente demandados. Há todo um desdo bramento de necessidades de pessoal e técnicos, difícil de controlar e com um custo em salários, honorários e diárias oscilante, senão crescente.

Desconhece-se a existência de cálculos minimamente rigorosos, que tentem apropriar o custo total dos recursos humanos, e de logística e infraestruturas necessárias para viabilizar os encontros e trabalhos diversos, envolvidos na negociação completa de um mega-acordo. Fator a nosso ver grave e levemente, para não dizer levianamente, tratado por economias em desenvolvimento, carentes de amplos fundos.
Dois argumentos são em geral levantados contra essa argumentação.
O primeiro é que tal custo, se computado e revelado significativo, seria muito inferior aos benefícios advindos do acordo. O segundo é que, além de tais beneficios estritos diretos, outros, relativos a formação e acréscimo de experiência dos quadros envolvidos, melhor arrumação e compreensão de dados e questões comerciais relevantes, e melhor inserção tanto dos quadros oficiais como de representantes privados na dinâmica global do comércio mundial, necessitam ser considerados.
A resposta a ambos, embora impressionista – como ambos são, pois os números não existem – é que são vistos com muito ceticismo.

Em primeiro lugar, as avaliações dos ganhos são bastante discutíveis, além de nunca totalmente satisfatórias e, o que é pior, supõem a não alteração das condições vigentes por ao menos uma década, período mínimo ao longo do qual elas devem se dar. Diante disso, como os gastos em pauta são desembolsados antes de tais benefícios e, sobretudo, em economias menos ricas, significam alocação alternativa imediata de recursos que podem ser mais valiosos em outras áreas e esforços – um dilema constante em países como o nosso –, fica difícil aceitar, sem sombra de dúvida, a ampla prevalência dos benefícios sobre os custos mencionados; tanto maiores quanto mais longas e complexas forem as negociações.

Ninguém objetaria que o envolvimento em negociações elaboradas como as em pauta significa um aprendizado relevante para a maioria dos envolvidos. Mas, novamente, isso tem que ser aferido em contraste às atividades alternativas. Oportunidades de inserção em dinâmicas internacionais não é privilégio das tratativas comerciais.

A ilusão geoestratégica

Desde que os acordos comerciais ganharam status de tema econômico, com a publicação, pelo Carnegie Endowment, do livro pioneiro de Jacob Viner, em 1950
– The Customs Union Issue –, ao mesmo tempo que começaram a atrair o interesse dos juristas, a dimensão política ou geopolítica – ou geoestratégica para usar conceitos mais atuais – passou a ter enorme relevância.

O projeto europeu, vendido a almas cândidas como ousada integração regional contemplando as quatro liberdades que seriam instauradas entre os seus membros, a livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas, tornando-se assim um paradigma-limite a nortear os acordos comerciais, não pode ser separado de profundas raízes históricas e geopolíticas.3

Em um tempo mais recente, as iniciativas combinadas da mencionada TTIP e da Trans-Pacific Partnership (TPP), disparadas sob a chancela e interesse dos Estados Unidos, representavam ousada estratégia de harmonização de regras e padrões no Ocidente desenvolvido e seus parceiros mais relevantes, em um movimento em pinça que deixaria a China isolada desse gigantesco complexo produtivo, ideal e uniformemente regulado.

O comércio, ainda que relevante, era uma fachada para a disseminação do marco profundo da globalização e do consequente movimento e estratégias irrestritas das transnacionais: a identidade regulatória e dos padrões e procedimentos, da contabilidade gerencial às especificações dos parafusos e à compatibilidades dos chips.

Todavia, mais do que as crises econômicas e as mudanças tecnológicas, o argumento geopolítico é peculiar e muitas vezes ilusório; como na famosa aria do Rigoletto de Verdi, è mobile qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero ...
Um câmbio de liderança na Casa Branca em 2016 e a TTIP são abortados e a TPP, ainda que concluída com 11 participantes, perde força e momentum. O agravamento da muito malresolvida relação da UE com a Rússia torna, devida ou indevidamente, a Ucrânia um casus belli que leva todo o acoplamento da questão ambiental com o comércio, prioridade entre as economias avançadas, sobretudo as verdes europeias, para terceira prioridade, senão absolutamente deixado de lado.

Acoplar os mega-acordos, como em princípio demandado por sua própria ambiciosa e abrangente natureza, a posicionamentos ou desígnios geopolíticos suspostamente superiores é fonte de desacertos, quando não de claros fracassos e custos adicionais.

Outras questões

O número de críticas pode ser aumentado em várias direções. Talvez a mais relevante seja referente à inserção de temas ambientais no debate. Sem manifestar posição contrária ao tema em si, novamente o que está em jogo é a obtenção expedita de um acordo que aumente os fluxos de comércio. A incorporação de requisitos ambientais e, mais complicado ainda, de comportamentos específicos nessa área como condição sine qua non para a realização do acordo dificulta e mistura instâncias regulatórias que melhor atuariam separadas. É interessante notar que, mesmo organizações bastante ativas nessa área, há muito levantam ponto semelhante, como exemplificado em Pfahl (2005).

Outras áreas complexas e com características muito próprias, como a galáxia digital, fornecem exemplos semelhantes de como se pode obstruir uma negociação com propósitos originalmente mais concretos e altamente desejáveis.

“O comércio, sempre peça importante, deve igualmente poder responder com rapidez e eficiência às mudanças, sem ficar cristalizado em regras e padrões que extravasam a sua própria essência”

HÁ BENEFÍCIOS EM UM MEGA-ACORDO?

Embora a retórica usual se recuse a colocar em dúvida essa questão, as evidências concretas são reduzidas e discutíveis. Poucas avaliações ex-post são feitas dos mega-acordos concluídos e em operação. Se as dificuldades metodológicas desculpam em parte essa lacuna, é inegável que – uma vez mais – a dimensão temporal, como dito, não só confunde a avaliação dos ganhos como, no tempo político, muda as prioridades, interesses e, até, os próprios objetivos da avaliação. O que existe, em nível de acordos específicos, é discutível.

Fontagné et al. (2022), em um trabalho com bastante rigor metodológico e lançando mão de considerável acervo de dados,4 tentam justamente responder à pergunta se os resultados dos mega-acordos são superiores aos dos mais restritos. O universo de análise são 278 acordos comerciais registrados na OMC até 2018. Esse total termina por ser dividido em três grupos, em que o impacto final de cada um sobre o comércio foi profundo, médio ou superficial, o que passa incluside a dar nome aos grupos. O grupo dos de impacto profundo é constituído majoritariamente por mega-acordos.

Uma conclusão aparente seria que os acordos deveriam se mover para o padrão daquele grupo, para se obter relevante intensificação do comércio mundial. Todavia, ao se olhar os componentes de tal grupo “profundo“, vê-se que são basicamente os diversos acordos da UE e da EFTA – cada alargamento ou alteração conta como um acordo – além de poucos outros, não necessariamente
muito abrangentes, mas envolvendo poucos parceiros extremamente afins, como o entre Austrália e Nova Zelândia, ou economias mais simples e também relativamente afins, como Chile- Canadá e Chile-EFTA. Talvez o único elemento mais relevante desse grupo, fora de experiências como a europeia, na raiz do empenho pelos mega-acordos, seja o Common Market for Eastern and Southern Africa (Comesa),5 envolvendo 21 países e em operação desde 1994.
A especificidade e particularidade dos membros do grupo profundo não parece prover um argumento suficiente em prol dos mega-acordos.

O QUE SERIA ATUALMENTE DESEJÁVEL

O número de problemas prementes e a grande insegurança estratégica do mundo atual sinalizam em prol de uma maior objetividade e foco no que diz respeito a qualquer acordo.

A discussão anterior deixa claro que favorecemos acordos preferenciais com propósitos bem definidos. Usando o nosso país como exemplo, seguimos sendo uma economia fechada, a necessitar de alguns passos significativos no que toca a certas aberturas, particularmente em áreas que nos ajudem a acelerar desenvolvimentos tecnológicos ou nos forneçam insumos estratégicos para produtos de maior valor adicionado e relevância. Os diversos complexos da química, da petroquímica inclusive, ou de maquinaria mais sofisticada, com uso mais intenso de tecnologias de informação, são alguns setores nos quais temos deficiências e necessidades sérias. Acordos com países que nos aportem com mais facilidade produtos desse tipo devem ser privilegiados.

Essa atitude reverte parte da lógica habitual em que parceiros usuais, ou estratégicos sob algum tipo de consideração geopolítica, são preferidos. Um pouco na direção contrária de um movimento apoiado por grupos em economias desenvolvidas, que proclamam a realocação das cadeias produtivas para “países amigos“, ou que “compartam valores semelhantes” – o friendly-shoring em vez do offshoring puro e simples – advogamos a procura dos que melhor possam nos suprir do que necessitamos para um upgrade produtivo. Isso não exclui um bom senso básico na escolha dos parceiros, mas nomeá-los a partir de conotações ambíguas, e cambiantes, como as mencionadas acima, é, no mínimo, uma atitude infantil. Ademais, nada garante que os “amigos“ tenham o que necessitamos ...

Pelo lado da ampliação dos mercados, a proximidade geográfica não deve nunca ser esquecida, o que, novamente usando o exemplo do Brasil, chama a atenção para nossos vizinhos, além dos do Mercosul, cujas potencialidades estão longe de ter sido completamente exploradas.

Essa mudança de atitude implica que o emprego de capital humano na política comercial deve se dar antes dos trabalhos afetos aos acordos, em estudos e análises aprofundadas para a identificação de produtos e parceiros sobre os quais, sim, acordos teriam valor. Os bois voltam para a frente da carroça e, sobretudo, as economias menos desenvolvidas tomam em suas mãos um melhor controle das possíveis negociações de interesse e seus custos.

Nada disso entra em conflito com eventuais disposições de um órgão regulador do comércio internacional. Em outros escritos6 temos nos ocupado, como muitos outros analistas e instituições, em formular proposições para um novo organismo, que substitua da forma menos traumática possível, a atual Organização Mundial do Comércio (OMC). Reformulação do Artigo XXIV do GATT 1994 é cogitada em nossas ideias, de forma a dar mais ênfase e encorajamento aos acordos mais simples, em lugar dos mega-acordos. Mesmo no atual contexto, eles têm trânsito mais facilitado – até por razões históricas – na Organização.
Vale também notar mais dois curiosos indícios.

O primeiro é que um dos blocos mais favoráveis aos mega-acordos, quando quer que as coisas de fato aconteçam, simplifica ao máximo o âmbito das negociações. O recente acordo da UE com o Vietnam foi assinado aos 30 de junho de 2019 e entrou em vigor em 1° de agosto de 2020. O desejo de estabelecer um pé na Association of Southeast Asian Nations (Asean), além de engajar um competidor local da China, orientou a execução de um acordo comercial clássico, com uma cláusula sobre investimento que correu em separado. Quando se quer realmente, sabe-se conter tanto a burocracia como a retórica ...

O segundo é que dois acordos recentes, envolvendo mercados muito vastos, dado o número de países envolvidos: o Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), que abrange os dez membros da Asean, além de China, Austrália, Japão, Coreia do Sul e Nova Zelândia, assinado em novembro de 2020, e o African Continental Free Trade Agreement (AfCFTA), assinado em março de 2018 e envolvendo 44 dos 55 países africanos, são áreas de livre-comércio, ainda que a AfCFTA tenha projetos de aprofundamento.

CONCLUSÃO

Advogamos uma abordagem mais simples, imediata e focada para os acordos comerciais. Uma das justificativas básicas é o incerto equilíbrio entre os altos custos de elaboração dos acordos abrangentes e os prospectivos benefícios que possam advir. A dimensão temporal assume um papel importante, pois aumenta os primeiros que, em geral, consomem anos até serem assinados, e duplica a incerteza quanto aos segundos, que requerem significativos intervalos de tempo para ocorrerem, sob a hipótese de que as condições então vigentes permanecerão inalteradas.

Esse requisito de um regime estático ideal é também relevante em nossa contra-argumentação, que traz implícita a crença de que os mega-acordos já se encontram em defasagem com as novas realidades geopolíticas. Se o que vemos – e deverá continuar – é um mundo onde alianças cambiantes ditarão a norma, enquanto duas superpotências dedicam cada vez mais tempo a confrontos e competições mútuas, de forma obcecada (Flôres, 2021), grupos de interesse mutantes e diferenciados procurarão arrumações diversas. O comércio, sempre peça importante, deve igualmente poder responder com rapidez e eficiência às mudanças, sem ficar cristalizado em regras e padrões que extravasam a sua própria essência.

Naturalmente, o argumento não implica que os outros temas geralmente incluídos nos mega-acordos não sejam de interesse, nem que, parte deles mereça ou necessite da assinatura de acordos internacionais. A confusão e interpenetração de problemas, que em última análise obviamente interagem, é o que se deseja evitar, com ganhos para todas as questões em pauta.

REFERÊNCIAS

FLÔRES JUNIOR, R. G. 2022. Advancing a Modern
Trade Order. FGV IIU Working Papers. Rio de Janeiro: FGV IIU International Intelligence Unit (also forthcoming in Boletim de Ciências Econômicas). Coimbra: Universidade de Coimbra.
FLÔRES JUNIOR, R. G. 2021. The World Corona Changed: US, China and Middle Powers in the New International Order. Abington: Routledge.
FLÔRES JUNIOR, R. G. 2004. Lecciones de la Unión Europea para el Mercosur. Archivos del Presente, Vol. 9, Nº 34, p. 43-54.
FONTAGNÉ, N. N. et al. 2022. The Economic Impact of Deepening Trade Agreements. Working Paper Nº 866. Paris: Banque de France.
MATTOO, A.; ROCHA, N.; RUTA, M. 2020. Handbook of Deep Trade Agreements, Nº 34055. World Bank Publications. Washington, D. C.: The World Bank. Disponível em: https://ideas.repec.org/b/wbk/wbpubs/34055.html.
PFAHL, S. (with support from S. Lovera and K. Bizzarri). 2005. Is the WTO the only way? Safeguarding Multilateral Environmental Agreements from international trade rules and settling trade and environment disputes outside the WTO. Briefing paper. Berlin, Brussels and Amsterdam: Adelphi Consult, Friends of the Earth Europe and Greenpeace.

1 No começo do conflito, alguns analistas cogitaram que, na ânsia de diversificar parceiros não só para insumos energéticos, o Acordo poderia receber um impulso na UE. Ainda que declarações nessa linha venham irregularmente ocorrendo, até o momento nada se verificou.
2 Notar que o “mega“ se refere a amplitude e profundidade ambicionadas para o texto final, abrangendo diversos assuntos, não ao número de participantes no acordo. Um mega-acordo pode ser assinado entre dois países.3 Isso não é novidade alguma. Vide, entre vários exemplos ainda mais antigos, Flôres (2004).
4 Utilizando inclusive o rico banco de dados sobre o assunto recentemente divulgado pelo Banco Mundial (Mattoo; Rocha; Ruta, 2020). O artigo ora discutido é cuidadoso e contém informações e considerações valiosas: a sua leitura é recomendada.
5 O Comesa mereceria considerações à parte que fogem às limitações deste artigo

RBCE
©Copyright  |  FUNCEX  |  Todos os direitos reservados