Christian Ramos atua na estruturação de operações financeiras, societárias e de mercado de capitais, sendo citado como um dos líderes individuais nas áreas de Banking and Finance e Agribusiness no Brasil pelos principais rankings especializados. Especialista em Transações Internacionais e Finanças pela New York University (EUA), é formado em Direito pela USP e também é Mestre em Direito Internacional (LL.M) pela Georgetown University (EUA).
Inicio este artigo com uma interessante reflexão que pude assistir outro dia em um painel de discussão acerca do assunto trade finance, em um fórum internacional de debate. Nessa oportunidade, o grande professor e personalidade marcante do trade finance contemporâneo global, Geoffrey Wynne (sócio e head do Trade and Emerging Markets Finance e da Sullivan & Worcester UK LLP) assim definiu:
essa classe de ativos é muito simples, um fornecedor produz algo, manufatura algo, ele então vende isso; o comprador paga por isso, o que o fornecedor vende torna-se seu recebível, o que o comprador paga, torna-se sua obrigação de pagamento. Isto é trade finance no seu nível mais simples! Mas claro que um twist nessa estrutura então aparece: quais são os termos dessa compra e venda; quando será feito o pagamento(?); o fornecedor quer ser pago o mais rapidamente possível, porque ele precisa do dinheiro, enquanto o comprador quer poder ter um prazo para efetuar este pagamento. Existe aí, portanto, uma lacuna maravilhosa que pode ser financiada, e isto cria essa classe de ativo (...)!
É exatamente a partir das inúmeras combinações possíveis, em decorrência dessa lacuna, que temos uma miríade de estruturas e possibilidades financeiras categorizadas no trade finance. Existe, entretanto, um grupo também numeroso de subcategorias dessa classe de ativos, mas que derivam da simplificação acima ilustrada e obedecem à mesma lógica, como os casos do commodity finance, supply chain finance, vendor finance, para citarmos algumas.
Essa especialização da classe de ativos trade finance passa, também, nesse momento, por outra grande transformação, envolvendo seus participantes-financiadores e originadores. Tendo-se como ponto de partida, ao menos na história mais recente, um cenário no qual os grandes bancos com presença global dominaram boa parte das oportunidades, das maiores às menores, devido ao seu custo de capital competitivo (seja pelos depósitos de correntistas ou colocação de papéis no mercado) e grande capilaridade ao redor do globo, hoje em dia, os ventos da mudança também sopram por aqui. Ultimamente, percebe-se com muito mais regularidade nas operações transnacionais de trade finance a presença de fundos de crédito especializados, hedge funds e fintechs, ou seja, participantes do mercado de capitais passando a ocupar esse espaço que, até há pouco, pertencia preponderantemente ao mercado financeiro tradicional. Some-se a isto um percebido retorno das grandes casas de trading globais que, na ausência dos grandes bancos, voltam a financiar com mais disposição seus clientes e fluxos de comércio entre ambos.
São esses os elementos que percebo no contexto atual dessa classe de ativos (trade finance) e que norteiam a construção do presente artigo.
Sigamos, portanto, com a análise... Tome-se por referência o Brasil, enorme potência na produção em escala de produtos primários, agropecuários, minerais, e mesmo hidrocarbonetos, muitos dos quais produzidos para consumo nos mercados externos e, portanto, exportáveis. Nota-se daí a relevância que o trade finance representa como forma de fomento, custeio e, por vezes, até mesmo investimento, para os participantes nacionais dessa grande engrenagem. Nesse sentido, nosso legislador pátrio, sabiamente, soube buscar desonerar o custo financeiro das linhas de trade finance, sempre que implicaram divisas de exportação para nosso país (visto que, mais recentemente, sequer obrigava-se legalmente nossos exportadores a concluírem a internalização dos recursos auferidos com essas exportações, e não utilizados no pagamento das despesas de juros e demais custos financeiros eventualmente incorridos em operações estruturadas).
A referida vantagem fiscal, somada à percepção sedimentada nos mercados globais de que, não obstante o desequilíbrio da balança comercial de um dado país e as eventuais restrições que um governo mais centralizador venha a impor aos fluxos e à conversibilidade de moedas estrangeiras, seria irrazoável pressupor que se fechariam as fronteiras ou se criariam obstáculos complexos às exportações. 1
E são estas acima as premissas que fizeram e fazem do trade finance uma das principais e mais tradicionais fontes de financiamento internacional, representando importantes produtos bancários disponíveis às nações e suas empresas.
É nesse compasso que pretendo fomentar o debate acerca do aprofundamento das medidas necessárias ao incremento da oferta de linhas de trade finance para tomadores brasileiros.
É sabido que, felizmente, e finalmente, os últimos anos presenciaram um ambiente legal e regulatório bastante mais favorável ao crédito para o agronegócio brasileiro. Nesse período pudemos testemunhar um sensível aumento da oferta de dinheiro para o financiamento do setor, mas de forma bastante diferente e mais construtiva que em momentos passados, em que tal resultado dependia exclusivamente do incremento do volume de linhas oficiais de financiamento (por exemplo: crédito rural, fundos específicos a determinadas culturas, entre outras), ou de um aumento do número de bancos internacionais e da disponibilidade de recursos para alocações no agronegócio brasileiro (como foi o caso nos anos de 2006, 2007 e 2008). Assim, percebemos entusiasmados que, atualmente, um volume expressivo das fontes de financiamento do setor agropecuário é procede do mercado de capitais brasileiro, seja por meio das frequentes emissões de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs), ou dos demais títulos originariamente criados pela Lei n° 11.076/2004, operações com os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), ou mesmo fundos de crédito, Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) vocacionados e especializados no setor.
Sem dúvida, uma grande conquista do agronegócio brasileiro e sinal de maturidade do mercado financeiro e de capitais pátrio! Contudo, mais do que apenas o agronegócio (não obstante sua contribuição de cerca de um quarto do PIB), temos na base exportadora do país as mais diversas atividades e indústrias, e uma iniciativa mais coordenada e focada no atendimento das necessidades de fomento e financiamento dessas cadeias produtivas deveria ser uma das principais prioridades das autoridades reguladoras do mercado financeiro e do mercado de capitais do país.
Portanto, apoiando-se em uma receita de sucesso comprovada, inicialmente criada para o mercado e os investimentos imobiliários, implementada já há algum tempo no Brasil, e que indiscutivelmente teve o condão de mobilizar recursos que anteriormente não estavam vocacionados para essa atividade econômica, mas que, pelos corretos incentivos proporcionados, mobilizaram-se em grande volume para esse mercado e permitiram um importante crescimento nos lançamentos de empreendimentos imobiliários nas mais variadas praças do Brasil, poderíamos pensar e propor algo semelhante cunhado ao trade finance.
Vale destacar que a referida experiência já foi aplicada, com equivalente sucesso, ao agronegócio, a partir dos títulos acima identificados, e com benefícios fiscais semelhantes. Os resultados foram exatamente os desejados, com uma importante diversificação das fontes de recurso destinadas ao financiamento das cadeias produtivas do agronegócio, não apenas com as volumosas emissões de CRAs, mas transações com cotas de Fiagro, distribuídas tanto para investidores pessoas físicas, investidores profissionais e mesmo institucionais.
1 Muito embora notemos com espanto que, em sentido absolutamente contrário a essa crença e lógica, a Argentina assim decidiu por fazer com suas commodities agrícolas – efetivando uma medida muito improvável, por tão desacertada e lesiva ao país, como pudemos acompanhar como expectadores próximos!
Com esse template de sucesso, já testado e experimentado por vezes, deveríamos indagar se não seria esse um adequado modelo a ser também aplicado para o fomento das cadeias produtivas exportadoras nacionais.
Assim, o que proponho é exatamente que seja criado um cenário de fomento à atividade exportadora e ao trade finance de maneira semelhante ao experimentado com o mercado imobiliário e o agronegócio. Seriam criados os Certificados de Recebíveis de Exportação (CREs), aproveitando-se do mesmo arcabouço legislativo instituído com a recente Lei n° 14.430, de 3 de agosto de 2022. A partir desses CREs e das estruturas de securitização daí decorrentes, qualquer exportador brasileiro detentor de uma Licença de Exportação (LE) estaria apto a securitizar seus recebíveis de contratos de exportação, com seus parceiros compradores estrangeiros. Dessa forma, a partir dessa credencial necessária, do devido registro e regularidade como exportador e de um lastro de recebíveis oriundos de contratos comerciais de exportação de produtos e serviços, poderíamos destravar uma importante alternativa de fomento financeiro ao trade finance, canalizando os recursos que já se mostraram fartos quando levando-se em consideração o comparativo do antes e depois da implementação do mesmo modelo para os mercados imobiliários e do agronegócio.
Aos investidores potenciais desse novo papel, o CRE, um aspecto bastante importante e interessante seria a possibilidade de ter os referidos ativos denominados em moeda estrangeira, que seria a mesma do recebível correspondente à operação de comércio exterior lastreando a securitização. Nesse sentido, vale lembrar que, não obstante o curso forçado da moeda pátria, as operações de comércio exterior e, dessa forma, também as de trade finance, fazem parte das exceções legais autorizadas a estipularem pagamento em moeda estrangeira, conforme autorizado pelo Decreto-Lei n° 857, de 11 de setembro de 1969.
Seria, ainda, oportuna a criação de espécies de fundos de investimento, tais como os Fundos de Investimentos Imobiliários (FIIs), ou os Fiagros, mas com a vocação do fomento mercantil das cadeias exportadoras, não importando o segmento econômico ou a classificação a que pertençam os bens a serem exportados (agropecuários, minerais, hidrocarbonetos, industriais, primários, semiacabados etc.). Em se possibilitando a esses fundos de investimento nas cadeias exportadoras os mesmos benefícios fiscais e o mesmo arcabouço jurídico e regulatório aplicável aos fundos já existentes, seria de se esperar que a mesma ordem de investidores (institucionais, profissionais e mesmo pessoas físicas) estaria propícia a também considerar tais estruturas como passíveis de investimento, como já ocorrido em outras classes de ativos (imobiliários e agro).
E ao possibilitar a criação desse novo mecanismo de fomento financeiro para as transações de comércio exterior brasileiras, ampliando o leque das possibilidades de trade finance, nosso legislador estaria, acertadamente, impulsionando o desenvolvimento da atividade exportadora brasileira, contribuindo para uma melhoria das contas relativas à nossa balança comercial, mas também ampliando a capacidade produtiva nacional com uma eficiente alternativa de funding para realização de investimentos nos projetos agropecuários, extrativistas, ou mesmo industriais, conquanto de base eminentemente exportadora, gerando empregos e desenvolvimento e, talvez, requalificando o Brasil como participante relevante no comércio internacional, retomando a condição de parceiro importante das principais nações do planeta, não apenas na exportação de commodities mas, desejavelmente, de bens manufaturados de alta qualidade.
Apesar da certeza da grande potencialidade dessa medida, acredito que não apenas nas possibilidades oriundas do mercado de capitais é que deveriam ser concentradas as medidas para o incremento da oferta de recursos financeiros visando ao fomento do comércio exterior brasileiro. Nossas autoridades monetárias poderiam também explorar medidas que trouxessem maior disponibilidade de recursos para tanto no sistema bancário nacional. Uma ideia seria diminuir o empréstimo compulsório ou as necessidades de reservas das instituições financeiras, em contrapartida a créditos concedidos diretamente para a atividade exportadora.
Em se criando alternativas que facilitem e estimulem o financiamento privado do comércio exterior brasileiro, ampliando as possibilidades do trade finance, ao tornarem mais amplas as possibilidades de fontes de financiamento, seja via mercado de capitais, ou a partir da redução do custo de capital das instituições financeiras para alocações a exportadores brasileiros, seja de mercadorias ou de serviços, criar-se -ia uma importante alavanca de desenvolvimento, ampliando-se as pautas de exportação do país, melhorando-se a nossa balança de pagamento e, por conseguinte, as contas públicas nacionais, e, com o aumento do fluxo e das pautas exportadoras, elevando-se o poder de barganha brasileiro nas arenas de negociação do comércio global.
Para concluir, o que pretendo com esta breve apresentação de ideias é estimular o debate e a reflexão acerca das possibilidades de ampliação do rol de instrumentos disponíveis ao trade finance nacional. A partir de experiências já consagradas nos mercados financeiros e de capitais brasileiros, com produtos e medidas criadas para outros setores que se pretendeu estimular e gerar um público investidor maduro, comprador desses ativos financeiros e papéis, entendido das suas idiossincrasias e riscos, poderíamos adotar como nação um novo momento de fomento da atividade exportadora. E qual a forma mais acertada a assim fazermos senão criando mecanismos e ferramentas para que o mercado privado cumpra com sua função empreendedora, recebendo os estímulos financeiros necessários e motivando a realização dos investimentos fundamentais para criação de novos negócios de base eminentemente exportadora, ou mesmo o aperfeiçoamento de atividades já existente, no intuito de melhorar a sua competitividade e produtividade?
É certo que o mero estímulo financeiro, de forma isolada, de pouco servirá, se este não for um projeto da nação, acompanhado de iniciativas multidisciplinares que, conjuntamente, desburocratizem, estimulem, simplifiquem e barateiem as atividades econômicas com objetivo exportador. Entretanto, ao conferir às empresas de base exportadora a oportunidade de, a partir de suas LEs, emitirem e colocarem no mercado valores mobiliários de grande demanda (CREs), que contam com um público investidor já cativo e uma demanda crescente, bem como, replicar estruturas e experiências vencedoras já anteriormente utilizadas com bastante sucesso para outras atividades, nossos governantes estariam, de forma muito acertada, e com um mínimo de intervenção, equipando nosso setor exportador para dar um salto qualitativo quântico na pauta de comércio exterior do nosso país, com todos os sabidos benefícios (também já aqui elencados) que isto certamente nos pode trazer.
É só ligar o LE com o CRE!!